Se ainda entre nós fisicamente, hoje
sopraria velinhas por cem anos em máxima epifania. Nascida “Chaya” em aldeia ucraniana,
tornou-se “Clarice” no Brasil. Brilhante. Luminosa. No nome e na existência de
sua escrita tecida a sonhos, desejos, realidades interpretadas e levadas ao seu
mosaico de vivências.
Clarice Lispector foi extraordinariamente
crítica do mundo e das sociedades no mundo existentes nos lugares por onde suas
andanças a levaram. Cada olhar analítico seu transformou-se e projetou-a em frases, parágrafos,
histórias, livros. E todos juntos desvelam para leitores inquietos
características profundas do existir humano.
Nessa semana, muito está sendo dito de Clarice
em diversos lugares. Merecidamente. Aqui vou apenas trazer a lume uma de suas histórias que
considero como uma das mais inquietantes e humanizadoras, tendo sido publicada no livro Laços
de família – este, levado ao público leitor pela primeira vez em 1960 pela
Editora Francisco Alves.
Desejo uma boa leitura.
Feliz
aniversário
Clarice Lispector
A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria
estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um
passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de
paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por
razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem
todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para
mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas
meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas
engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. Tendo Zilda —
a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo
das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de
cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e
emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não
deixar de vir”, dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas
mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam
bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu
vestido azul-marinho e com os paetês.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido
viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a
única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a
aniversariante — e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os
croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos
de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras
fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá
ociosa e uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje
oitenta e nove anos.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de
guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara
balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito “Happy Birthday!”,
em outros “Feliz Aniversário!” No centro havia disposto o enorme bolo
açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço,
encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não
desarrumar a mesa.
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo
depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o
broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu
cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante
estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.
De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando
curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em
quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o voo
da mosca em torno do bolo.
Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de
Ipanema.
Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um
segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria — que
cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora
de Ipanema — entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala
começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos
tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três
lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala —
e inaugurando a festa.
Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais,
de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à
cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.
— Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho
agora que Jonga tinha morrido. — Oitenta e nove anos, sim senhora! disse
esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos.
Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um
modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde.
Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim
senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.
— Oitenta e nove anos! ecoou Manoel que era sócio de José. É um
brotinho! disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.
A velha não se manifestava.
Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram
saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de
cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para
seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar
constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga,
irônica.
— Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a
esposa.
A velha não se manifestava.
Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não
adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de
uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros
sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando
de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava,
nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um
cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer
frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada,
sorrindo.
— Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se
fala em negócios!
— Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando
rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.
— Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!
Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo
inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.
E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho
que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras,
então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela
grande com um papelzinho colado onde estava escrito “89″. Mas ninguém elogiou a
ideia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que
fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia
contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela,
Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então
acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando
com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de
uma vez!” — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada
pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram
em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam
cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português
passaram a cantar bem baixo em inglês.
Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa,
meditava como junto de uma lareira.
Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe
encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um
instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e
exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo
pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.
— Viva mamãe!
— Viva vovó!
— Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.
— Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.
Bateram ainda algumas palmas ralas.
A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.
— Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem
deve partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como
todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: —
parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se
hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com
punho de assassina.
— Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se
estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco
horrorizada.
— Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com
mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga.
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse
sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas
acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.
Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num
silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela
mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda
intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças
angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.
E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava
devorando o seu último bocado?
E por assim dizer a festa estava terminada.
Cordélia olhava ausente para todos, sorria.
— Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José
radiante.
— Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem
olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração
passou-lhe rápido pelos músculos da cara.
— Hoje é dia da mãe! disse José.
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo
desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe
de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e
obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e
mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe
de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos
aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho,
pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a
ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e
despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela
cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os
outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como
tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e
rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom
homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que
lhe fizera filhos e lhe pagará os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco
fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer
para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos,
sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que
eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se
acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita
cuspiu no chão.
— Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe!
gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que
os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à
velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe,
jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. — Mamãe, que é isso! — disse
baixo, angustiada. — A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que
todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar
pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando
ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a
velha não passava agora de uma criança.
— Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando
contrita para todos.
Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em
silêncio.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos,
embora crescidos — provavelmente já além dos cinquenta anos, que sei eu! — os
meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam
escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos e mais azedos — haviam
escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados
de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal
os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as
orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.
— Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na
mão.
— Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta
roliça e baixinha.
— Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. —
Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo
de vinho, Dorothy! — ordenou.
Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico
de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se
manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço
que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos
tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam
impassíveis.
Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente
apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela
tempestade.
Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho
que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo.
Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse
acontecido.
Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos
como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as
vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono
com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se
desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio
dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua
cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem
um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o
que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando
distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira
de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.
E por assim dizer, de novo a festa estava terminada.
As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção
voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e
expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não
alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias
de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a
tarde cala rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso
estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém
perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça,
mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a
tranquilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais
pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder,
no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.
— Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e
sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo.
A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se
sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu
aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um
final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera
quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as
pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.
— Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se
a velha nas suas profundezas.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles
que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que
parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a
toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última
palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que
ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava
serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia
para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que
se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance.
Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu —
enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada,
perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda
um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua
derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.
Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à
cabeceira da mesa.
Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de
Rodrigo a nora seguiu-o espantada.
— Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno
da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.
— Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta
riu sem achar graça.
— Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a
esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma
úmida das mãos.
Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca
se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e
confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não
vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas — José enxugou
a testa com o, lenço — como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único
a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta
segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro
entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo
olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os
sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a
testa, heroico, risonho.
E de repente veio a frase:
— Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia,
encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até
o ano que vem, hein? repetiu com receio de não ser compreendido.
Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre
vivia mais um ano.
— No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu
melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem,
mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido,
enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso
frouxo, compreendendo a alusão.
Então ela abriu a boca e disse:
— Pois é.
Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José
gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos:
— No ano que vem nos veremos, mamãe!
— Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado
certo.
As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A
nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem
gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num
prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de
despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras —
pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na
tranquilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.
Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram
rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade
sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura
de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia
talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais
— que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era
um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar,
andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.
— Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a
mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era
gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem!
gritou José eloquente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as
pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se
bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia
mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam
obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no
escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à
impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: “Pelo
menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema. “Para completar uma
data bonita”, pensou sonhadora.
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava
a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que
ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu
mistério.
LISPECTOR, Clarice.
Feliz aniversário. Laços de família. São Paulo: Rocco, 1998.