sábado, 30 de agosto de 2014

O TEMPO...

Meu amigo, compadre e parceiro musical Matteus Viana Neto diz, em sua música "Cavalo selvagem", os seguintes versos:

Tão breve é o tempo
Correndo assim
Cavalo, selvagem
Não tens arreio
Ninguém te domou

A metáfora à selvageria do cavalo, óbvio, se assenta no fato da inquietação, da não permissão a seu domínio, da autonomia do animal cuja preferência é pelos vastos campos onde realiza tudo a sua vontade e a sua hora, sem cabresto que lhe amordace a boca e imponha freio a seus passos. Institua limites a sua existência, cerceando a liberdade natural. Um cavalo selvagem é livre... Assim é o tempo matteusiano. 

"Cavalo selvagem" foi música composta lá pelo final dos anos 1970. Nesses seus versos, Matteus expõe sua inquietação relacionada à passagem do tempo, algo que sempre nos vence, nos suplanta, nos sobrepuja, porque ele, o tempo, "não para". Nos excede sem que percebamos. O tempo é tema caro e angustiante a muitos artistas, muitos poetas, muitos músicos, muitas pessoas em todas as atividades sociais e culturais.

O magnífico Rubem Alves, falecido em julho recente, assim edificou alguns versos sobre o tempo, em um poema intitulado "Contei meus anos":

Contei meus anos e descobri
Que terei menos tempo para viver do que
já tive até agora
Tenho muito mais passado do que futuro
Sinto-me como aquele menino que recebeu
uma bacia de jabuticabas
As primeiras, ele chupou displicentemente
Mas, percebendo que faltam poucas, rói o caroço

Alves, a meu entender, não observa a passagem do tempo com tristeza, amargura ou até desgosto. Ele dispõe compreender a passagem do tempo como algo natural, tão natural e puro quanto um menino que se ocupa em saborá-las, mas, em percebendo que elas diminuíram em quantidade, se reduziram, põe-se a consumir as restantes aproveitando a plenitude de seu máximo. É, Rubem Alves, sinto que você foi esse menino, cujo maior divertimento foi ficar roendo as jabuticabas as quais lhe couberam nos últimos "tempos". O tempo... Ah, o tempo...   

Também Fernando Pessoa se dedicou ao tema, e legou para a humanidade os versos seguintes, do poema "Há um tempo":

Há um tempo em que é preciso abandonar as
roupas usadas...
Que já têm a forma do nosso corpo...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam
sempre aos
mesmos lugares...

É o tempo da travessia...
E se não ousarmos fazê-la...
Teremos ficado... para sempre...

À margem de nós mesmos...

Pessoa... Pessoa... Será que precisamos mesmo ser trezentos, trezentos-e-cincoenta, andradianamente, para que as vestes nos caibam, reinventadas reinventando-nos, quem sabe a tentar driblar o tempo a nos tornar mais velhos, mais frágeis, mais afastados de nós mesmos? O tempo - sua ação feroz - nos faz isso e até apaga de nós a memória do que somos, do que fomos, do que planejamos ser... e não alcançamos nem nos abeirar... 

Ah, Pessoa... Pessoa... És esfinge?...

No seu poema "Os ombros suportam o mundo", Carlos Drummond de Andrade desconcerta o leitor, em abordagem contundente a respeito do tema:

Chega um tempo em que não se diz mais:
meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Desconcertado, eu enveredo por me questionar se encontrarei jabuticabas para roer-lhes o caroço, se terei condições de abandonar as roupas já amalgamadas a minha existência, se terei ombros fortes o suficiente para suportar o mundo. A única certeza no mais profundo agora desse instante é que o tempo está cavalgando, selvagem, sem arreio, imperioso, sem domador...

Chico Araujo. 30/08/2014.

domingo, 10 de agosto de 2014

EM NOME DE MEU PAI


Em 2000, em meu primeiro livro de narrativas que considerei como contos - O relógio de parede -, publiquei a história "Depois de tudo", uma homenagem a meu pai. Hoje, 10 de agosto de 2014, Dia dos Pais, senti uma intensa necessidade de trazer esse texto para cá, à semelhança do que fez meu amigo Lira Neto ao publicar sua esplêndida homenagem a "Bob Lira".


Depois de tudo
Chico Araujo

 
Finalizou o trabalho. Pelo menos, assim entendeu. Mas aí, lembrou-se da ausência e voltou-lhe a saudade. Em suas asas, lembranças de tempos bem antes...

Criança, teve a presença e a mão carinhosas em dia de cirurgia. Após, no afã de gerar-se tranquilidade, um automóvel vermelho, de plástico, comprado de um ambulante ali pela Praça da Lagoinha. Em domingos de sol, houve caminhada para banho de mar na Praia dos Navegantes, passos paternos e fraternos marcando uma existência de fé nas calçadas da Escola de Aprendizes Marinheiros. A Praia da Marinha era sã. Havia muita praia antes do mar, que não cheirava mal. Cheirava, sim, a amor e comunhão. Naquela extensão de liberdade, alguns dos primeiros ensinamentos para a dimensão do mundo. Em outros domingos de sol, a distante Praia do Náutico se aproximava, materializando-se nas visões cúmplices quando descia, o Circular, pela Av. Desembargador Moreira. Ali também houve um joguinho de futebol, brincadeira dirigida por quem queria divertir e divertir-se. Ali, o mestre ensinava, talvez sem saber, a lição do companheirismo. A lição da comunhão. A lição de família.

Em sóis de férias escolares, houve mares mais distantes, no então longínquo Icaraí. A casa de praia de parentes disfarçava para as crianças as poucas condições financeiras em que vivia a família. Para os filhos tudo era sonho e diversão. Para a mãe, prazer de estar com sua extensão e temor pelas viagens constantes do marido: diariamente deixava a cidade praiana, céu ainda na noite, para, às cinco horas, na Pracinha do Clube, adentrar no ônibus que o levaria até Caucaia, lugar em que haveria a baldeação para o coletivo que o traria a Fortaleza, onde deveria estar às sete horas para o início do trabalho. Para ele, então, havia o cansaço do ir e vir diário de uma festa da qual não participava tão intensamente. Mas além da canseira, havia o dormir tranquilo de quem se sabia correto nas atitudes. Havia dignidade nos passos cansados e no olhar feliz da felicidade dos seus.

Recordar é... reviver. No cubículo, trancado, isolado, recordações recompunham fatos e histórias adormecidos. Memória edificada pelo tempo. Tempo em que as acontecências registravam-se de maneira desimportante, rotineira, comum. A saudade faz a diferença. Estabelece valores inimagináveis ao que supostamente não teria valor algum.

Na adolescência, presenças constantes no Estádio Presidente Vargas para gritar gol e torcer por vitórias do querido Vovô. Gestos, palavrões, refrões, vibrações; tensões, angústias, tristezas, raivas. Ali, alegria e tristeza eram antagonismos que se somavam a um momento de prazer e glória: sua diversão eram os seus. Ali tomava uma cervejinha, comia um churrasquinho no espeto, mimava os filhos com pipocas, picolés e, eventualmente, refrigerantes. Já em casa, catarse completa, era mais manso e mais ele. Estava entre os seus.

De outra feita - lembra-se - uma lição magna, cercada de bondade e de visão futura. Houve uma cervejada num bar da Beira-Mar, o já inexistente Badalo. Era domingo. Um filho, acompanhado de amigos, após um pouco de sol e banhos no mar, vai à cerveja. Depois de muitas, ao voltar do banheiro, percebe que está só, que os amigos haviam desaparecido, deixando a ele a responsabilidade de pagar a despesa. Como não tivesse o dinheiro suficiente, acordou com o gerente - para sorte sua - que deixaria sua identidade e que retornaria depois para fazer o pagamento devido. O pai ouviu a história e não adotou castigo. Aconselhou: escolhesse bem seus amigos. Depois, forneceu a quantia. Nunca soube quanta falta aquele dinheiro fez em casa. Mas era assim: pobre, justo e honesto. Um dos maiores ensinamentos seus aos seus: justiça, honestidade, dignidade.

Ah, lembranças!... As lembranças recordam fatos e revelam pistas, indícios daquilo que se foi e daquilo que se poderia ter sido. Pelas dificuldades que passou na vida, poderia ter sido amargurado, aborrecido, derrotado. Não. Suas dificuldades foram-lhe desafios que o tornaram estrategista, ponderado, sensato. Elas fizeram-no ver que do pouco que ganhavam, ele e sua mulher, dependia todo o amanhã de toda a família. E dedicou-se a ela. Sua família era tudo; tudo era para ela. Poderia ter sido outro, mas foi amor, foi respeito, foi dedicação, foi ela, foi norte. Bússola indicadora dos caminhos bons, das estradas certas. Era silente. Mas seu silêncio tinha magnitude tal que não era ausência. Era paz. Era mão amiga sem muitos afagos; era direção sem muitas palavras; era aconchego sem muitos abraços. Era vida. Era bênção. Era o pai que abre as portas para o filho que retorna, cabeça baixa, mãos vazias, descendência pronta. Era o amigo que não precisava dizer-se assim. Poderia ter sido muitas coisas. Mas esqueceu-se de si para dar-se ao outro. Reconhecendo seus limites, estimulou a superação. Superou-se, para ser amor.

Muitos outros momentos poderiam ser revelados, já que as lembranças eram muitas e aconteciam quase que em atropelos pela intensidade com que vinham. Mas, ... depois de tudo, depois de tudo que viveu, depois de tudo que foi, depois de tudo que ainda era... havia uma imagem eterna que marcava sempre qualquer recordação: no crepúsculo, um caminhar balançante que irrompia da rua em destino a casa, vindo... vindo... vindo e chegando, em sorriso de quem desejava o retorno, e beijando a mão da mulher-amada-companheira, e abrindo as mãos de doces para os filhos, e abrindo os braços para a família, e traçando rumos para a sua descendência... sem o saber?!...