domingo, 10 de agosto de 2014

EM NOME DE MEU PAI


Em 2000, em meu primeiro livro de narrativas que considerei como contos - O relógio de parede -, publiquei a história "Depois de tudo", uma homenagem a meu pai. Hoje, 10 de agosto de 2014, Dia dos Pais, senti uma intensa necessidade de trazer esse texto para cá, à semelhança do que fez meu amigo Lira Neto ao publicar sua esplêndida homenagem a "Bob Lira".


Depois de tudo
Chico Araujo

 
Finalizou o trabalho. Pelo menos, assim entendeu. Mas aí, lembrou-se da ausência e voltou-lhe a saudade. Em suas asas, lembranças de tempos bem antes...

Criança, teve a presença e a mão carinhosas em dia de cirurgia. Após, no afã de gerar-se tranquilidade, um automóvel vermelho, de plástico, comprado de um ambulante ali pela Praça da Lagoinha. Em domingos de sol, houve caminhada para banho de mar na Praia dos Navegantes, passos paternos e fraternos marcando uma existência de fé nas calçadas da Escola de Aprendizes Marinheiros. A Praia da Marinha era sã. Havia muita praia antes do mar, que não cheirava mal. Cheirava, sim, a amor e comunhão. Naquela extensão de liberdade, alguns dos primeiros ensinamentos para a dimensão do mundo. Em outros domingos de sol, a distante Praia do Náutico se aproximava, materializando-se nas visões cúmplices quando descia, o Circular, pela Av. Desembargador Moreira. Ali também houve um joguinho de futebol, brincadeira dirigida por quem queria divertir e divertir-se. Ali, o mestre ensinava, talvez sem saber, a lição do companheirismo. A lição da comunhão. A lição de família.

Em sóis de férias escolares, houve mares mais distantes, no então longínquo Icaraí. A casa de praia de parentes disfarçava para as crianças as poucas condições financeiras em que vivia a família. Para os filhos tudo era sonho e diversão. Para a mãe, prazer de estar com sua extensão e temor pelas viagens constantes do marido: diariamente deixava a cidade praiana, céu ainda na noite, para, às cinco horas, na Pracinha do Clube, adentrar no ônibus que o levaria até Caucaia, lugar em que haveria a baldeação para o coletivo que o traria a Fortaleza, onde deveria estar às sete horas para o início do trabalho. Para ele, então, havia o cansaço do ir e vir diário de uma festa da qual não participava tão intensamente. Mas além da canseira, havia o dormir tranquilo de quem se sabia correto nas atitudes. Havia dignidade nos passos cansados e no olhar feliz da felicidade dos seus.

Recordar é... reviver. No cubículo, trancado, isolado, recordações recompunham fatos e histórias adormecidos. Memória edificada pelo tempo. Tempo em que as acontecências registravam-se de maneira desimportante, rotineira, comum. A saudade faz a diferença. Estabelece valores inimagináveis ao que supostamente não teria valor algum.

Na adolescência, presenças constantes no Estádio Presidente Vargas para gritar gol e torcer por vitórias do querido Vovô. Gestos, palavrões, refrões, vibrações; tensões, angústias, tristezas, raivas. Ali, alegria e tristeza eram antagonismos que se somavam a um momento de prazer e glória: sua diversão eram os seus. Ali tomava uma cervejinha, comia um churrasquinho no espeto, mimava os filhos com pipocas, picolés e, eventualmente, refrigerantes. Já em casa, catarse completa, era mais manso e mais ele. Estava entre os seus.

De outra feita - lembra-se - uma lição magna, cercada de bondade e de visão futura. Houve uma cervejada num bar da Beira-Mar, o já inexistente Badalo. Era domingo. Um filho, acompanhado de amigos, após um pouco de sol e banhos no mar, vai à cerveja. Depois de muitas, ao voltar do banheiro, percebe que está só, que os amigos haviam desaparecido, deixando a ele a responsabilidade de pagar a despesa. Como não tivesse o dinheiro suficiente, acordou com o gerente - para sorte sua - que deixaria sua identidade e que retornaria depois para fazer o pagamento devido. O pai ouviu a história e não adotou castigo. Aconselhou: escolhesse bem seus amigos. Depois, forneceu a quantia. Nunca soube quanta falta aquele dinheiro fez em casa. Mas era assim: pobre, justo e honesto. Um dos maiores ensinamentos seus aos seus: justiça, honestidade, dignidade.

Ah, lembranças!... As lembranças recordam fatos e revelam pistas, indícios daquilo que se foi e daquilo que se poderia ter sido. Pelas dificuldades que passou na vida, poderia ter sido amargurado, aborrecido, derrotado. Não. Suas dificuldades foram-lhe desafios que o tornaram estrategista, ponderado, sensato. Elas fizeram-no ver que do pouco que ganhavam, ele e sua mulher, dependia todo o amanhã de toda a família. E dedicou-se a ela. Sua família era tudo; tudo era para ela. Poderia ter sido outro, mas foi amor, foi respeito, foi dedicação, foi ela, foi norte. Bússola indicadora dos caminhos bons, das estradas certas. Era silente. Mas seu silêncio tinha magnitude tal que não era ausência. Era paz. Era mão amiga sem muitos afagos; era direção sem muitas palavras; era aconchego sem muitos abraços. Era vida. Era bênção. Era o pai que abre as portas para o filho que retorna, cabeça baixa, mãos vazias, descendência pronta. Era o amigo que não precisava dizer-se assim. Poderia ter sido muitas coisas. Mas esqueceu-se de si para dar-se ao outro. Reconhecendo seus limites, estimulou a superação. Superou-se, para ser amor.

Muitos outros momentos poderiam ser revelados, já que as lembranças eram muitas e aconteciam quase que em atropelos pela intensidade com que vinham. Mas, ... depois de tudo, depois de tudo que viveu, depois de tudo que foi, depois de tudo que ainda era... havia uma imagem eterna que marcava sempre qualquer recordação: no crepúsculo, um caminhar balançante que irrompia da rua em destino a casa, vindo... vindo... vindo e chegando, em sorriso de quem desejava o retorno, e beijando a mão da mulher-amada-companheira, e abrindo as mãos de doces para os filhos, e abrindo os braços para a família, e traçando rumos para a sua descendência... sem o saber?!...

 

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