sábado, 20 de setembro de 2014

UMA QUESTÃO DE SER... OU NÃO SER...


 Por Sérgio Araujo em 20/09/2014.

Recebi de um amigo, por e-mail, já há alguns dias, a imagem abaixo, com estampada mensagem de Léo Buscaglia (Felice Leonardo Buscaglia, professor italiano nascido em 31 de março de 1924 e morto em 11 de junho de 1998, que ministrou aulas na University of Southern California, tendo sido autor de artigos para o New York Times sobre assuntos relacionados ao amor e sobre o humano), ambas encontráveis no endereço http://educar-a-vida.blogspot.com:



  
Imagem e mensagem me puseram em reflexão.
Meu amigo também é da área e, como tal, também é professor e, desde alguns bons anos, coordenador de curso superior. Assim sendo, prontamente viveu e certamente ainda vive, experiencia, acontecimentos que envolvem as ações no magistério. E eu concordo com ele, quando expressa posicionamento ideológico por meio da imagem e da mensagem já mencionadas.
De fato, se o principal papel do professor é possibilitar a formação de seu aluno, como isso poderá acontecer se o professor, ele próprio, não acredita em si mesmo, em seu trabalho, em sua capacidade de lidar com os contextos que se lhes apresentam, os quais ele precisa enfrentar diariamente - e são tantos -, se não acredita que a educação é um processo de transformação?
Reflito resultar implícito possivelmente um problema na imagem, na mensagem e na ideologia veiculadas por meu amigo: é que muitas vezes o que se traveste de mudança não é, de fato, mudança, apenas “mais do mesmo”; outras vezes, o que não parece mudança, de fato mudança é, embora não se perceba nitidamente, ou porque de fato está implícita, ou porque, por algum motivo outro, se esconde, se escamoteia, se faz implícita por mecanismo deliberado por alguém.
As propagandas, de uma maneira geral, por sua natureza, têm esse poder de trabalhar no subconsciente das pessoas muito mais o implícito do que o explícito. Um simples exemplo: muitas vezes olhamos a imagem de um sanduíche numa lanchonete e somos induzidos por ela a acreditar que o sanduíche pedido por nós ali será tal e qual a efígie ostentada no ambiente. Grande engano.
Outro exemplo, não tão simples: em época de campanha política, como a que nos envolve agora, somos, de certa maneira, “conduzidos”, “dirigidos”, “geridos”, “governados” por imagens de contundente apelo – não poucas vezes de caráter emocional – e por discursos assemelhados e até certo ponto contraditórios e vazios de tantos candidatos a funções públicas privilegiadas, todos solicitando nosso “precioso voto”, a fim de que possam nos representar. Outro grande engano; este, bem maior e mais intenso que o do exemplo anterior.
Não é à toa, portanto, que no intuito de lançar luzes potentes a nos concederem a condição de vermos os implícitos propostos nos mais variados discursos – imagéticos ou não –, disciplinas de tantos cursos no ensino superior chamam a atenção dos estudantes para o poder do marketing, e da própria propaganda em si. Um e outro, em união, possuem extremado poder de sedução. Quem sabe seduzir... seduz!
Mas, retornando à imagem e à mensagem: como professores que somos e educadores que devemos ser, precisamos, cada vez mais, ampliar a capacidade de nossos alunos em ler o mundo, para que sejam cada vez mais críticos, a ponto de verem o que precisa ser realmente visto. Para tanto, não pode haver ambiguidade na forma como a educação deve ser entendida e posta em prática. Se nossos alunos precisam de nós, somos tesouro de potente valor para eles; o processo de educação a ser vivenciado em benefício deles não pode prescindir da verdade, da adequação, da justeza mesmo, da possibilidade transformadora.
Finalizando o texto, contudo obviamente não infligindo um ponto final ao assunto e ao debate aqui proposto em torno dele, defendo o ponto de vista de que nós, professores, não podemos nos permitir o esquecimento das situações em que nem nós conseguimos enxergar o que precisa ser enxergado. Também somos falhos. Também nos acompanham limitações. Por isso, também em nós a educação transformadora precisa acontecer em constância, seres em formação a cada instante de nossa vida. Precisamos nos reinventar sempre – continuando a sermos nós mesmos, enquanto também nos vamos compondo de/em outros. E necessitamos, assim como os estudantes que se acercam de nós, enxergar melhor o mundo a nos circundar, se é nosso desejo formar estudantes não somente para terem boa posição no mercado de trabalho, mas principalmente para se firmarem homens de verdade, pautados na Ética e na Moral.

sábado, 13 de setembro de 2014

UM FATO. O EFEITO BORBOLETA: SUAS CONSEQUÊNCIAS...


A torcedora Patrícia Moreira xingou o goleiro Aranha de "macaco". Não uma vez apenas, mas repetidamente. Segundo a torcedora Patrícia, seus xingamentos foram algo pertinente ao contexto do jogo, posto que seu "clube do coração", o Grêmio, perdia para o Santos e o goleiro Aranha impedia que o adversário empatasse a contenda. 

Daí vieram os gritos de "macaco" assumidamente endereçados a ele. A torcedora - e outros torcedores, diga-se - revelou atitude preconceituosa contra o atleta do Santos. Deve arcar com as consequências pertinentes.

Mas, reflitamos: Até onde devem ir essas consequências? Quem deve ter o poder de imputar à moça as medidas punitivas cabíveis?

Convenhamos, a situação está apresentando fatos extraordinários: a moça hoje não tem mais sua vida de antes, devido às proporções que o caso tomou. Não pode sair às ruas, sob pena de ser atacada; tem recebido ameaças pela Internet; seu celular se mantém desligado a maior parte do tempo; não frequenta mais as redes sociais como antes; varia de casa de amigos porque não pode ficar em um lugar específico. Certamente está em forte abalo psicológico.

Agora ateiam fogo a sua casa, a casa onde morava antes daquele jogo. Tudo consequência de um xingamento no calor da partida; talvez, sim, um ato impensado, impulsionado pelo coro formado por tantos torcedores "agressores". Ela está pagando um preço muito alto pelo que disse. Outros torcedores não.

Considero que a situação foge ao controle que deveria existir. Um controle de Estado.

Não, não quero inocentá-la pela ação que teve e que gerou tudo isso e que pode gerar ainda muito mais. Quero é aproveitar o fato para propor reflexões: 1. Quem somos nós que vamos assistir a um jogo de futebol em um estádio e nos sentimos com todo o direito de xingarmos quem desejarmos? 2. Quem somos nós que nos delegamos o direito de julgar e condenar tão rapidamente a "inimiga pública número 1" uma pessoa cuja ação intempestiva, reitero, possivelmente não refletida, em uma partida de futebol, ofendeu um semelhante? (Entendo que a grande imprensa tem sua parcela de culpa nisso). Quem somos nós que decidimos tornar a vida da "gremista" em um "inferno contínuo"?

Minha mais intensa reflexão nesse momento me encaminha a entender que há valores humanos e sociais antigamente existentes para os quais hoje se fecham os olhos: RESPEITO AO PRÓXIMO; RESPEITO A SI MESMO; CONSCIÊNCIA DE LIMITE; OBSERVÂNCIA À INVIOLABILIDADE DE PROPRIEDADE, PRIVADA OU PÚBLICA; CERTEZA DE PUNIÇÃO AO SE COMETER ATO DEPLORÁVEL, AO SE COMETER CRIME, DE QUALQUER NATUREZA.

Comenta-se que o Estado brasileiro está falhando com seu cidadão em muitos aspectos. Concordo. E muitas famílias estão formando mal os seus filhos. Em meio a tudo isso, aquilo a que nos acostumamos a chamar de "civilização" parece ruir aos sopros infames de seu "lobo mau": o próprio homem, seu criador.


https://br.esporteinterativo.yahoo.com/noticias/casa-de-torcedora-gremista-suspeita-de-racismo-foi-incendiada--suspeito-foi-preso-nesta-tarde-222943946.html

domingo, 7 de setembro de 2014

UMA HISTÓRIA COMO REFLEXÃO


Nessa época em que regiões de nosso país enfrentam, assim como, mais uma vez, muitas cidades do Nordeste, a aridez do solo decorrente de prolongada estiagem, resolvo dispor aqui história de minha autoria, para depreensão do que se esconde por trás de recorrentes momentos de sofrimento por quem enfrenta a seca. Estimo ser esse um momento em que vale a reflexão. 



Destinos
Chico Araujo  
  

Foi-se Jacinto no intuito de mudar o seu destino e levou consigo tudo o que lhe pertencia: um par de calças já surradas, duas camisas bastante puídas, seu chinelo de rabicho e o inseparável chapéu de palha, de aba longa, protegendo-o do sol no rosto.
Não conseguiu fugir sozinho: Marieta seguiu-lhe os rastros, ou porque a ele se apegara muito, ou por temer sua sorte naquela solidão de fim de mundo. Jamais revelaria seus motivos ao companheiro nem ele a questionaria, porque o modo de vida que os unia não lhes dava palavra que sustentasse qualquer murmúrio de carinho, de afeição, de amizade.
Ambos, brutos seres desprovidos de um ser que os elevasse à categoria de gente, de gente que vê, que pensa, que sente além do sítio de penúria e de agonia a envolvê-los. Eram do mato, do sertão, logo eram do fim do mundo – resmungava com insistência Marieta, sem nem bem entender o porquê desse seu monólogo, só, envolvida no seu mutismo enquanto se inquietava com a paisagem além da janela.
Uniram-se quase meninos ainda, ele contava dezesseis, ela catorze. Numa dessas festas da padroeira, um se enrabichou pelo outro: ele se enleando no sorriso de canto de boca da roceira encabulada do olhar vivo e cobiçador do sertanejo antes de tudo um forte; ela se enredando no riso aberto e galante daqueles músculos adolescentes e varonis. Nos dois meses depois juntaram os panos e foram viver da terra num pequeno sítio que ele herdara da morte dos pais.
Dentro do silêncio de cada um, a natureza propôs uma nova geração. Na rudeza de um sertão marcado pelo pouco, a nova vida chorando nas mãos esquálidas da parteira. De princípio, os peitos secos minando leite mirrado. Na quinzena, uma dor sem palavras nem lágrimas marca a passagem de Francisco. Nas pás lançando areia, a resignação.
Alguns meses depois, na alegria da terra embebida de chuva – voto de esperança em dia de santo padroeiro – um novo sopro de vida acende a crença da perpetuação. Então foi o verde nos olhos e José no ventre. No ruminar de Marieta e Jacinto podia-se alcançar menos aridez. Nos olhos, relâmpagos de alegria.  Mas o sertão viu a terra banir das entranhas as chuvas de São José. Bem pouco tempo depois José baniu-se dos sonhos daqueles dois. Depois disso a natureza silenciou neles.
Por isso tanta secura naqueles dois? O sertão marca o espírito e as carnes. Os rostos sulcados, marcas fundas riscavam um caminho íntimo de dor e solidão. Uma vez que assim eram, que assim foram desde sempre, que futuro a partir dali? Um resto de qualquer coisa indefinida e esquecida em um canto qualquer, de um jeito qualquer, conforme fora com os seus em um tempo que não o de agora?
Quando se puseram um ao lado do outro, não se falaram. Ele sentiu-a pelos passos, pela ofegação, pelo cheiro. Conhecia aquele cheiro já de muito, nem entendia bem por que deixara a mulher para trás, minutos antes. Era companheira. De roça, de rede, de angústia, de silêncio.
Da minha onipresença, vê-los andarilhos (pisando pedregulhos naquela estrada vermelha, corredor que se fazia entre vegetações queimadas exibindo galhos finos, secos, desnutridos, sol abrasador sobre tudo até onde a vista alcançava e mais além, quando outras imagens se infiltravam na paisagem única do caminho) lembrou-me uma história de muito tempo. Agora, porém, apenas dois bípedes, nenhuma ave, nenhuma prole, nenhum animal amigo a caçar a sobrevida dos donos.
Os passos deles na poeira do caminho, sinais de incertezas. Futuro?... Quem sabe de ontem o que vai ser um hoje? Se além daquela curva houvesse um pouso bom, de água e sombra frescas... quem sabe um pouquinho de comida, talvez algum resto... a sorte de muitos caminhantes, andarilhos de ontem tais quais eles naquela hora perdida de tarde seca de sertão queimado, chão rachado de muita ausência de chuvas.
Naquele torrão esturricado, a alpercata de couro marcava o ritmo de uma marcha que trazia a Jacinto a imagem do menino de sete anos. O barulho do choque do calçado com o chão pedregoso compunha a imagem de muitos fugitivos trilhando a mesma sorte que ele ali. Vieram-lhe levas de gente em comboios de penitente miséria. Velhos, moços, crianças em procissão de penúria vagando pelos rincões de areias estéreis de estradas ladeadas pela ausência do verde, marcada profundamente pela presença vigorosa de vegetação rasteira e carbonizada.
Agora não havia multidão. Resistira o quanto pôde durar a teimosia dele, pois a mulher já se teria posto à capital muitos dias antes, quando arribaram os vizinhos. Jacinto é que cismou com a vinda de novas chuvas, só deixando para trás o pequeno sítio depois de ter de comer a carne da última cabra. Agora o que havia era a solidão de dois seres caminhando lado a lado quase, companheiros de silêncio e de infortúnio.
Já vários quilômetros sob as sandálias de couro cru, Jacinto e Marieta avistam uma cabana de beira de estrada, sem portas ou janelas, só teto de palhas, rústica como a vida ali – por certo um antigo lugar de comércio de bugigangas religiosas ou de frutos de época. A tarde dava os primeiros sinais de que se recolhia para a chegada da noite. A choça seria lugar de repouso praqueles bichos do mato.
Sob o céu piscante de estrelas e sentados frente à fogueira feita de alguns gravetos achados na caatinga, os andarilhos mastigaram o único alimento do dia, dividindo mais um pouco do que restara da última cabra. Mastigaram em silêncio o naco que coube a cada um; depois beberam um pouco da água salobra que a mulher conseguira pôr numa quartinha quando esvaziara o pote. Da cabra, ainda dois pedaços sobrariam para o dia seguinte.
Já três horas distantes da Ave Maria, a pergunta:
- Por que tu vêi atrás deu, muier?
- Nóis num veve um sem o outro, home! Também num devemu morrer longe.
Depois, só o canto da noite, as estrelas no céu sem nuvem, o frio que não se acredita.
- Anda, muier, levanta que nóis tem que ir mais pra diante. Nóis tem que apruveitar que o sol inda não apareceu.
No cansaço viçando em seu corpo, Marieta levantou-se e teve de apressar o passo para alcançar seu homem. Seguiu-o pelo rumor dos paços nos calhaus, o dia ainda em breu. Quando o sol deu os primeiros sinais, Jacinto parou para esperar a mulher que se distanciava. Andara rápido demais?
Frente a frente, o olhar de um para o outro foi prenúncio. Naquele encontro, muito além do silêncio das palavras, uma fagulha de adeus. E ele lembrou-se de quando a conhecera, esperançando, ali, ver de novo no canto da boca o sorriso envergonhado de quem deseja. E ela recordou a festa da padroeira, fazendo erguer-se, da lembrança, a imagem daquele sertanejo que a cobiçou, e que, rápido, sumiu, transformando-se num retirante esquálido postado diante de seus olhos. Se ela soubesse chorar, choraria; se ela soubesse gritar, gritaria. Mas àquela hora, naquele sertão seco, quente, carbonizado, só a natureza grave e inóspita dava sinais de existência. E de resistência.
Quando Jacinto parou a segunda vez, o sol já brilhava as onze horas. Nenhuma sombra, nenhuma cabana. A mulher já se arrastava pelo caminho, demorando-se mais a chegar. Havia uma curva adiante, e dela Jacinto pressentiu vozes. Que os acolheram. Estava ali um breve acampamento, uma família de doze retirantes que depusera uma cruz sobre o menorzinho do grupo. Deram espaço sob o pano sobre as cabeças, armado entre quatro paus. Comida não tinham, não senhor. Nem água. Mas já bem perto estava Esperança, e lá teriam ajuda, com a bênção de Deus.
Marieta comeu sozinha os bocados restantes da cabra. Os mais resistentes viam nela os traços da indesejada. Quando a última água chegou-lhe ao estômago, o primeiro sinal de dor expressou-se nos olhos, nas faces. Nenhum gemido. Não se demorou olhando as crianças choramingando comida, repetitivas, monótonas – todas magrelas, sujas, barrigudas –, reclamando da fome e da sede.  Fez descer o olhar sobre as duas famílias que ali estavam, uma prosseguindo a outra, ramificadas; e quase uma lágrima desce-lhe, ao prevê outras cruzes sendo estacadas no caminho que ainda seria trilhado.
Quando viu os olhos do marido, a segunda estocada de dor veio acompanhada de uma sensação de frio. Na testa agora franzida, o suor gotejava, e um tremor repentino nas mãos podia ser visto por todos que a olhavam. Fitou o marido, que lhe sentiu o esfriamento do corpo, enquanto a recostava numa trouxa de roupas dos outros retirantes, em silêncio.
Ela, muda, olhava-o metamorfoseando-se, o homem esquálido ali defronte, confundindo-se no rapazote vigoroso de antes. Até imaginou um riso aberto e galante num rosto adolescente e varonil; mas o sol a pino bateu-lhe sobre os olhos, e a visão que lhe veio agora foi a de um homem velho, sugado pelo sertão, semi-esquelético, marcado no olhar por dores jamais expressas, sempre caladas, amalgamadas a seu destino. Essa visão marcante, definitiva, foi-se afastando, elevando-se, sumindo-se, até perder-se em uma cerração, como se olhasse de nuvens.
Às duas horas da tarde, Jacinto reiniciava a caminhada, agora entre estranhos, ouvindo a lamentação de crianças pedindo comida e água. Era, a lamúria delas, o único som produzido entre eles, além do arrastado das sandálias nos seixos. Rumavam para Esperança, a cidade mais próxima, e acreditavam que nela encontrariam acolhida, alimento, água, um pouco de sossego. Poucos passos dados, Jacinto estaca, a investigar o azul inabalável do céu e a desolação da caatinga. Parece que deseja chorar. Detém-se olhando duas cruzes fincadas naquele deserto, mexe os lábios como quem carece de falar – mas nada diz.
         Com o sol aquentando sua cabeça, força a marcha para unir-se ao grupo que já se distancia. Mais um ciclo se cumpriu. Sulcos mais profundos tracejam seu rosto de homem forjado no adverso sertão...


Conto publicado originalmente no livro Em compasso de espera, pela Editora e Gráfica LCR, em 2011, com lançamento acontecido em 2012 na Bienal do Livro do Ceará.