domingo, 7 de setembro de 2014

UMA HISTÓRIA COMO REFLEXÃO


Nessa época em que regiões de nosso país enfrentam, assim como, mais uma vez, muitas cidades do Nordeste, a aridez do solo decorrente de prolongada estiagem, resolvo dispor aqui história de minha autoria, para depreensão do que se esconde por trás de recorrentes momentos de sofrimento por quem enfrenta a seca. Estimo ser esse um momento em que vale a reflexão. 



Destinos
Chico Araujo  
  

Foi-se Jacinto no intuito de mudar o seu destino e levou consigo tudo o que lhe pertencia: um par de calças já surradas, duas camisas bastante puídas, seu chinelo de rabicho e o inseparável chapéu de palha, de aba longa, protegendo-o do sol no rosto.
Não conseguiu fugir sozinho: Marieta seguiu-lhe os rastros, ou porque a ele se apegara muito, ou por temer sua sorte naquela solidão de fim de mundo. Jamais revelaria seus motivos ao companheiro nem ele a questionaria, porque o modo de vida que os unia não lhes dava palavra que sustentasse qualquer murmúrio de carinho, de afeição, de amizade.
Ambos, brutos seres desprovidos de um ser que os elevasse à categoria de gente, de gente que vê, que pensa, que sente além do sítio de penúria e de agonia a envolvê-los. Eram do mato, do sertão, logo eram do fim do mundo – resmungava com insistência Marieta, sem nem bem entender o porquê desse seu monólogo, só, envolvida no seu mutismo enquanto se inquietava com a paisagem além da janela.
Uniram-se quase meninos ainda, ele contava dezesseis, ela catorze. Numa dessas festas da padroeira, um se enrabichou pelo outro: ele se enleando no sorriso de canto de boca da roceira encabulada do olhar vivo e cobiçador do sertanejo antes de tudo um forte; ela se enredando no riso aberto e galante daqueles músculos adolescentes e varonis. Nos dois meses depois juntaram os panos e foram viver da terra num pequeno sítio que ele herdara da morte dos pais.
Dentro do silêncio de cada um, a natureza propôs uma nova geração. Na rudeza de um sertão marcado pelo pouco, a nova vida chorando nas mãos esquálidas da parteira. De princípio, os peitos secos minando leite mirrado. Na quinzena, uma dor sem palavras nem lágrimas marca a passagem de Francisco. Nas pás lançando areia, a resignação.
Alguns meses depois, na alegria da terra embebida de chuva – voto de esperança em dia de santo padroeiro – um novo sopro de vida acende a crença da perpetuação. Então foi o verde nos olhos e José no ventre. No ruminar de Marieta e Jacinto podia-se alcançar menos aridez. Nos olhos, relâmpagos de alegria.  Mas o sertão viu a terra banir das entranhas as chuvas de São José. Bem pouco tempo depois José baniu-se dos sonhos daqueles dois. Depois disso a natureza silenciou neles.
Por isso tanta secura naqueles dois? O sertão marca o espírito e as carnes. Os rostos sulcados, marcas fundas riscavam um caminho íntimo de dor e solidão. Uma vez que assim eram, que assim foram desde sempre, que futuro a partir dali? Um resto de qualquer coisa indefinida e esquecida em um canto qualquer, de um jeito qualquer, conforme fora com os seus em um tempo que não o de agora?
Quando se puseram um ao lado do outro, não se falaram. Ele sentiu-a pelos passos, pela ofegação, pelo cheiro. Conhecia aquele cheiro já de muito, nem entendia bem por que deixara a mulher para trás, minutos antes. Era companheira. De roça, de rede, de angústia, de silêncio.
Da minha onipresença, vê-los andarilhos (pisando pedregulhos naquela estrada vermelha, corredor que se fazia entre vegetações queimadas exibindo galhos finos, secos, desnutridos, sol abrasador sobre tudo até onde a vista alcançava e mais além, quando outras imagens se infiltravam na paisagem única do caminho) lembrou-me uma história de muito tempo. Agora, porém, apenas dois bípedes, nenhuma ave, nenhuma prole, nenhum animal amigo a caçar a sobrevida dos donos.
Os passos deles na poeira do caminho, sinais de incertezas. Futuro?... Quem sabe de ontem o que vai ser um hoje? Se além daquela curva houvesse um pouso bom, de água e sombra frescas... quem sabe um pouquinho de comida, talvez algum resto... a sorte de muitos caminhantes, andarilhos de ontem tais quais eles naquela hora perdida de tarde seca de sertão queimado, chão rachado de muita ausência de chuvas.
Naquele torrão esturricado, a alpercata de couro marcava o ritmo de uma marcha que trazia a Jacinto a imagem do menino de sete anos. O barulho do choque do calçado com o chão pedregoso compunha a imagem de muitos fugitivos trilhando a mesma sorte que ele ali. Vieram-lhe levas de gente em comboios de penitente miséria. Velhos, moços, crianças em procissão de penúria vagando pelos rincões de areias estéreis de estradas ladeadas pela ausência do verde, marcada profundamente pela presença vigorosa de vegetação rasteira e carbonizada.
Agora não havia multidão. Resistira o quanto pôde durar a teimosia dele, pois a mulher já se teria posto à capital muitos dias antes, quando arribaram os vizinhos. Jacinto é que cismou com a vinda de novas chuvas, só deixando para trás o pequeno sítio depois de ter de comer a carne da última cabra. Agora o que havia era a solidão de dois seres caminhando lado a lado quase, companheiros de silêncio e de infortúnio.
Já vários quilômetros sob as sandálias de couro cru, Jacinto e Marieta avistam uma cabana de beira de estrada, sem portas ou janelas, só teto de palhas, rústica como a vida ali – por certo um antigo lugar de comércio de bugigangas religiosas ou de frutos de época. A tarde dava os primeiros sinais de que se recolhia para a chegada da noite. A choça seria lugar de repouso praqueles bichos do mato.
Sob o céu piscante de estrelas e sentados frente à fogueira feita de alguns gravetos achados na caatinga, os andarilhos mastigaram o único alimento do dia, dividindo mais um pouco do que restara da última cabra. Mastigaram em silêncio o naco que coube a cada um; depois beberam um pouco da água salobra que a mulher conseguira pôr numa quartinha quando esvaziara o pote. Da cabra, ainda dois pedaços sobrariam para o dia seguinte.
Já três horas distantes da Ave Maria, a pergunta:
- Por que tu vêi atrás deu, muier?
- Nóis num veve um sem o outro, home! Também num devemu morrer longe.
Depois, só o canto da noite, as estrelas no céu sem nuvem, o frio que não se acredita.
- Anda, muier, levanta que nóis tem que ir mais pra diante. Nóis tem que apruveitar que o sol inda não apareceu.
No cansaço viçando em seu corpo, Marieta levantou-se e teve de apressar o passo para alcançar seu homem. Seguiu-o pelo rumor dos paços nos calhaus, o dia ainda em breu. Quando o sol deu os primeiros sinais, Jacinto parou para esperar a mulher que se distanciava. Andara rápido demais?
Frente a frente, o olhar de um para o outro foi prenúncio. Naquele encontro, muito além do silêncio das palavras, uma fagulha de adeus. E ele lembrou-se de quando a conhecera, esperançando, ali, ver de novo no canto da boca o sorriso envergonhado de quem deseja. E ela recordou a festa da padroeira, fazendo erguer-se, da lembrança, a imagem daquele sertanejo que a cobiçou, e que, rápido, sumiu, transformando-se num retirante esquálido postado diante de seus olhos. Se ela soubesse chorar, choraria; se ela soubesse gritar, gritaria. Mas àquela hora, naquele sertão seco, quente, carbonizado, só a natureza grave e inóspita dava sinais de existência. E de resistência.
Quando Jacinto parou a segunda vez, o sol já brilhava as onze horas. Nenhuma sombra, nenhuma cabana. A mulher já se arrastava pelo caminho, demorando-se mais a chegar. Havia uma curva adiante, e dela Jacinto pressentiu vozes. Que os acolheram. Estava ali um breve acampamento, uma família de doze retirantes que depusera uma cruz sobre o menorzinho do grupo. Deram espaço sob o pano sobre as cabeças, armado entre quatro paus. Comida não tinham, não senhor. Nem água. Mas já bem perto estava Esperança, e lá teriam ajuda, com a bênção de Deus.
Marieta comeu sozinha os bocados restantes da cabra. Os mais resistentes viam nela os traços da indesejada. Quando a última água chegou-lhe ao estômago, o primeiro sinal de dor expressou-se nos olhos, nas faces. Nenhum gemido. Não se demorou olhando as crianças choramingando comida, repetitivas, monótonas – todas magrelas, sujas, barrigudas –, reclamando da fome e da sede.  Fez descer o olhar sobre as duas famílias que ali estavam, uma prosseguindo a outra, ramificadas; e quase uma lágrima desce-lhe, ao prevê outras cruzes sendo estacadas no caminho que ainda seria trilhado.
Quando viu os olhos do marido, a segunda estocada de dor veio acompanhada de uma sensação de frio. Na testa agora franzida, o suor gotejava, e um tremor repentino nas mãos podia ser visto por todos que a olhavam. Fitou o marido, que lhe sentiu o esfriamento do corpo, enquanto a recostava numa trouxa de roupas dos outros retirantes, em silêncio.
Ela, muda, olhava-o metamorfoseando-se, o homem esquálido ali defronte, confundindo-se no rapazote vigoroso de antes. Até imaginou um riso aberto e galante num rosto adolescente e varonil; mas o sol a pino bateu-lhe sobre os olhos, e a visão que lhe veio agora foi a de um homem velho, sugado pelo sertão, semi-esquelético, marcado no olhar por dores jamais expressas, sempre caladas, amalgamadas a seu destino. Essa visão marcante, definitiva, foi-se afastando, elevando-se, sumindo-se, até perder-se em uma cerração, como se olhasse de nuvens.
Às duas horas da tarde, Jacinto reiniciava a caminhada, agora entre estranhos, ouvindo a lamentação de crianças pedindo comida e água. Era, a lamúria delas, o único som produzido entre eles, além do arrastado das sandálias nos seixos. Rumavam para Esperança, a cidade mais próxima, e acreditavam que nela encontrariam acolhida, alimento, água, um pouco de sossego. Poucos passos dados, Jacinto estaca, a investigar o azul inabalável do céu e a desolação da caatinga. Parece que deseja chorar. Detém-se olhando duas cruzes fincadas naquele deserto, mexe os lábios como quem carece de falar – mas nada diz.
         Com o sol aquentando sua cabeça, força a marcha para unir-se ao grupo que já se distancia. Mais um ciclo se cumpriu. Sulcos mais profundos tracejam seu rosto de homem forjado no adverso sertão...


Conto publicado originalmente no livro Em compasso de espera, pela Editora e Gráfica LCR, em 2011, com lançamento acontecido em 2012 na Bienal do Livro do Ceará.

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